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Escravidão: ex-escravizado que virou traficante

Outros Assuntos/ Psicologia e Psicossomática

Quem foi Joaquim de Almeida, ex-escravizado que virou traficante de escravos

Por Edison Veiga, Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

Entre os séculos 16 e 19, pelo menos 4 milhões de homens, mulheres e crianças foram trazidos, à força, do continente africano para o território brasileiro. A imensa maioria deles morreu em condições subumanas, depois de uma vida precária de pesados trabalhos forçados. Uma pequena proporção conseguiu a sonhada liberdade. Uma minoria irrisória acabou ganhando dinheiro e ascendendo socialmente. Joaquim de Almeida é um desses curiosos e raros casos — e sua vida tem um enredo rico em complexidade.

Ele nasceu no antigo país Mahi, uma área dominada pelo reino de Daomé, na África Ocidental, região dos atuais Benim e Togo. Escravizado, foi mandado ao Brasil. Depois de alguns anos, contudo, Almeida conseguiu a alforria e “mudou de lado”: tornou-se ele próprio um empreendedor do lucrativo negócio do tráfico negreiro. Muito bem-sucedido, diga-se. De acordo com o recém-lançado livro ‘Joaquim de Almeida: A história do africano traficado que se tornou traficante de africanos, do antropólogo espanhol radicado no Brasil Luis Nicolau Parés, nove anos depois de libertado, Almeida já era considerado um “homem de negócios atlântico” e acumulava uma fortuna que o punha entre os 10% mais ricos da Bahia.

Conforme conta Parés à BBC News Brasil, foram muitas as dificuldades encontradas para contar a trajetória desse personagem, em razão “da escassez de fontes historiográficas, pois os africanos escravizados ou libertos raramente deixavam rastros documentais”. “Se, por um lado, sua inusitada ascensão social gerou alguns registros, por outro, o fato de ele participar de atividades clandestinas, como o tráfico de escravizados atlântico no seu período ilegal, favoreceu seu silenciamento e invisibilidade”, diz o antropólogo, que é professor na Universidade Federal da Bahia. “Foi preciso garimpar por mais de dez anos em diversos arquivos, no Brasil, na Europa e na África, para juntar as peças que permitiram reconstituir aspectos parciais de sua trajetória.”

A data de nascimento de Almeida é uma lacuna que persiste. Mas muito provavelmente ele é da primeira década do século 19. “Não conhecemos sua data de nascimento. As tradições orais sustentam que ele foi escravizado, ainda criança, em tempos do rei Adandozan [que governou o Daomé de 1797 a 1818], portanto antes de 1818, quando esse rei foi deposto. Assim, podemos especular que ele nasceu na primeira década do século”, comenta Parés.

“Há indícios, não conclusivos, de que ele teria sido escravizado por volta de 1814 e sabemos que comprou sua carta de liberdade em 1830”, detalha. “Conhecemos também a data de óbito, na cidade de Agoué [atual Benim], em 11 de maio de 1857.”

Infância e chegada ao Brasil

Segundo as pesquisas do antropólogo, Almeida nasceu na aldeia de Hoko, no país Mahi, ao norte do reino do Daomé, na margem ocidental do rio Ouemé. Sua língua nativa era o mahigbe e ele era da família Azima. Provavelmente ele também dominava os idiomas nagô e iorubá, considerando o entroncamento regional de onde ele vinha.

A tradição oral dá conta que Almeida se tornou escravo quanto tinha entre 8 e 12 anos. Ele teria sido vendido por seu irmão mais velho, Bibi Sokpa. “Nesse tempo, reza a narrativa, todos se envolviam no tráfico, e, quando havia epidemias, secas ou fome, as crianças eram enviadas do interior à praia pra serem vendidas”, escreve Parés, no livro.

Uma outra versão relata que Sokpa caçava elefantes e, por ter matado um que estava destruindo as plantações da capital do reino, o monarca Adandozan quis recompensá-lo com a oportunidade de trabalhar no Brasil, onde seria feitor — o supervisor, o capataz — a serviço de Manoel Joaquim de Almeida, capitão do mar, senhor de escravos e traficante negreiro que mantinha boas relações com o rei africano. Sokpa alegou cansaço e velhice e disse que mandaria o irmão no lugar.

Esta segunda narrativa é incongruente, pois atestaria que Joaquim de Almeida chegou ao Brasil já como homem-livre — o que não é verdade, afinal os documentos de alforria dele, datados de 1830, existem.

Parés encontrou uma certidão de batismo datada de 4 de setembro de 1814 que pode ser o primeiro registro da presença de Almeida no território brasileiro. Ocorreu na freguesia de Santo Antônio Além do Carmo, em Salvador, onde morava o traficante de escravos Manoel Joaquim de Almeida e, no texto, dizia que o batizado era “Joaquim, adulto, escravo de Manoel Joaquim”.

Tudo indica que Almeida tenha sido um dos primeiros escravizados à serviço de Manoel Joaquim de Almeida. Para o antropólogo, esse fato, aliado ao dado de que foram mais de 15 anos de trabalhos, devem ter criado uma cerca amizade entre os dois. O africano provavelmente ganhou a camaradagem de seu senhor ao demonstrar lealdade, comprometimento e boa índole.

Além disso, o fato de ele dominar idiomas africanos e ter o que se convencionou chamar de “língua geral”, ou seja, uma boa comunicação interafricana, com trânsito multicultural, fez de Almeida um parceiro importante nas negociações escravagistas de seu senhor. Tudo indica que ele tenha sido intérprete nas transações de compra e venda e o fato de ele ser africano dava vantagem nos acordos, pois transmitia alto grau de confiança.

O antropólogo também aventa a hipótese de que Almeida, dado seu conhecimento linguístico e cultural, tenha assumido funções de controle e vigilância dos escravizados, sendo o responsável por dar as ordens a bordo e também nos barracões em que eles ficavam confinados antes do embarque ou após o desembarque.

Livre e empreendedor

 De acordo com documento do cartório do tabelião Manoel Pinto da Cunha, preservado no Arquivo Público da Bahia, a carta de alforria de Almeida foi assinada em 30 de junho de 1830, na casa de seu então senhor Manoel Joaquim de Almeida. O africano comprou a liberdade entregando a Manoel um feixe de notas no total de 600 mil réis — dinheiro que provavelmente ele havia acumulado nos trabalhos paralelos que realizava quando participava das empreitadas atlânticas a mando do capitão do mar Manoel.

A liberdade propiciou a ele que seguisse a carreira aprendida com seu senhor — ou seja, Joaquim de Almeida se converteu, ele próprio, em traficante de escravos. “[Ele] é um personagem fascinante”, afirma à BBC News Brasil o historiador Carlos da Silva Junior, professor na Universidade Estadual de Feira de Santana e presidente da Associação Brasileira de Estudos Africanos. “É importante dizer: Joaquim de Almeida é um exemplo do que o Estado e as instituições liberais contemporâneas celebram como o empreendedor, o self-made-man.”

“Ele saiu da escravidão à liberdade e alcançou prosperidade econômica agenciando o transporte de seres humanos através do Atlântico. No capitalismo, ninguém alcança grande projeção sem explorar a vida de outras pessoas. Foi assim com Joaquim de Almeida, no passado, é assim como muita gente hoje”, acrescenta o historiador.

No livro, Parés demonstra como o ex-escravizado galgou posições sociais na Bahia daquele tempo, sendo que ainda em 1831 foi padrinho de batismo de um cativo e, até 1838 já acumulava 16 afilhados, o que denotaria prestígio.

O historiador Nielson Bezerra, professor na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, diz à BBC News Brasil que o caso de Almeida “é muito peculiar porque ele fez fortuna” e teve negócios “na Bahia, em Cuba e na África”. “[Sua trajetória] mostra essas interconexões do [comércio do] Atlântico”, analisa ele, lembrando que Almeida tinha uma “visão capitalista” da escravidão. “Aí vem a ideia do empreendimento, do empreendedor. E ele se tornou um grande empreendedor”, acrescenta o historiador.

Mas o cenário, a partir de 1831, não era tão favorável à importação de mão de obra escravizada como havia sido nos primeiros anos de Almeida no Brasil. Isto porque em 7 de novembro daquele ano foi promulgada a chamada Lei Feijó que, entre outras limitações ao uso de trabalho forçado proibia a importação de africanos escravizados — em 1850, uma legislação seria ainda mais rigorosa quanto ao tráfico negreiro, a Eusébio de Queirós. Ora, a atividade de Almeida havia se transformado em ilegal. Ele não se resignou — tornou-se um traficante clandestino, fazendo contrabando de escravizados.

Para isso, contou tanto com o aprendizado do negócio, principalmente na década de 1820, quanto também com a rede de contatos que havia construído com africanos livres na costa africana e também no Brasil. Havia todo um esquema para driblar a legislação — e Almeida recorreu a todos os subterfúgios para exercer sua atividade.

Em 1934 foi enquadrado e feito réu por contrabando. Contando com boa assessoria jurídica, conseguiu comprovar que eram “falsas” as declarações. No ano seguinte, foi absolvido e o caso encerrado. “Um aspecto instigante e complicado de sua biografia é a passagem que ele fez da condição de escravizado para o envolvimento no lucrativo comércio do tráfico atlântico”, analisa Parés. “De fato, enquanto cativo de um capitão negreiro, ele já participava dessa atividade antes de sua emancipação. Porém, o que se destaca no caso de Almeida é que, uma vez emancipado, além do comércio em pequena escala, ele conseguiu participar do grande negócio do tráfico ilegal.”

“Transitando pela Bahia e atuando como feitor na costa africana, conduzindo os comboios humanos e juntando os carregamentos para o embarque, ele passou a suprir alguns dos mais poderosos negociantes das praças da Bahia, Recife e Cuba”, acrescenta. “Sua capacidade de articulação internacional e mobilidade social é realmente notável e demonstra a agência, iniciativa e habilidade de alguns libertos para operar em circunstâncias definitivamente adversas.”

Autor do livro ‘Cativos do Reino: a circulação de escravos entre Portugal e Brasil’, o historiador Renato Pinto Venancio, professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) lembra à BBC News Brasil que “casos de ascensão social de ex-escravos” merecem ser melhor estudados. “É importante conhecer esses casos-limite da escravidão, em que o sujeito nasce escravo e, depois morre milionário”, comenta. “Mas também é importante não perder de vista a excepcionalidade desses casos. […] A grande maioria dos libertos morria na miséria e era enterrado como indigente.”

Volta à África

 Na África, Joaquim era Zoki Zata. E suas viagens traficantes também construíam raízes na costa do continente. Em 1835, construiu uma capela em Zokikome, dedicada a Nosso Senhor Bom Jesus da Redenção. O próprio bairro, aliás, em Agoué, havia sido fundado por Zoki e seus seguidores. Zokikome significa “o bairro de Zoki”.

O antropólogo Parés ressalta que este é um “outro aspecto relevante”: a religiosidade desses africanos retornados da escravidão brasileira. “Sem esquecer suas tradições ancestrais, eles adotavam o catolicismo […] como forma de agregar recursos espirituais complementares”, pontua. “Almeida é lembrado, por seus descendentes, como o introdutor do catolicismo no litoral africano e por ter construído, décadas antes da chegada das missões europeias, uma capela sob a invocação de Nosso Senhor da Redenção, o mesmo nome da irmandade católica de homens pretos da qual participara na Bahia.”

“Essa forma de abrasileiramento cultural, assumindo as formas da religião dominante, facilitou sua mobilidade social numa sociedade escravocrata que tendia a marginalizá-lo. Porém, de volta na África, ele também formou uma grande família poligâmica na contramão da ortodoxia cristã e nos moldes das chefias locais”, ressalta.

Ainda nos anos 1830 Zoki Zata ergueu sua casa na África. Gradualmente, ele começava a ficar mais tempo lá do que no Brasil. Segundo as pesquisas de Parés, em 1840 ele já estava oficialmente sediado em Agoué, de onde centralizava negócios da Bahia e mantinha relações com lideranças locais. A correspondência lhe era endereçada sob as referências de “capitão” e “ilustríssimo senhor”, o que denota o respeito social que ele havia conquistado.

De 1838 a 1842, sua residência foi contínua no território africano. Então morou por dois anos novamente na Bahia. Sua última viagem ao Brasil teria sido em 1845. Em 1849, o oficial da Marinha inglesa Frederick E. Forbes (1819-1851) descreveu Almeida como “o residente mais rico de Uidá, originário do país Mahi, vendido como escravo, retornou da Bahia e é hoje um traficante de escravos de grande escala”. No ano seguinte, Forbes escreveu mais sobre ele, classificando-o de “um homem astuto e notoriamente inteligente, educado no Brasil no período de sua escravidão”.

Em 1850, com a Lei Eusébio de Queirós, o cerco antiescravista passa a se fechar contra pessoas como Almeida. Almeida experimentou um declínio de sua fortuna, mas mesmo assim segue envolvido em negócios com traficantes.

Passou também a diversificar suas atividades, atuando também no comércio de tabaco e azeite de dendê. Em 1852, Almeida perdeu grande parte do seu patrimônio em um incêndio. Ele afirmou, exagerando, que havia ficado “com apenas a camisa que vestia”.

Parés entende, contudo, que desde o reestabelecimento na África até a morte, o grande projeto de Almeida era formar uma grande família “nos moldes africanos”, diz o antropólogo — ou seja, como um chefe africano de seu tempo, tendo a vida familiar baseada na poligamia, numerosa descendência e agregação de escravizados, seguindo um padrão dos “grandes homens” das sociedades iorubás. As informações são desencontradas, mas tudo indica que ele reconheceu como legítimos 34 filhos, mas teve outras dezenas, com muitas mulheres diferentes — há indicações de que eram pelo menos 80.

Escreveu o antropólogo e etnólogo Pierre Verger (1902-1996) que “percebemos em Joaquim de Almeida o retorno aos valores africanos, seja no afã de procriar inúmeros filhos como no de ser enterrado em sua própria casa, com cerimônias que nada têm a ver com o catolicismo”. De acordo com a tradição oral, Almeida teve uma “boa morte”, tendo morrido na praia, jogando adji enquanto aguardava a chegada de um navio negreiro. Adji é um jogo de cálculo popular na África Ocidental. Outra versão afirma que o africano teve uma morte causada por feitiço de um inimigo, depois de um desentendimento decorrente de uma dívida. Ficou sua singular história.

“A vida de Joaquim de Almeida apresenta numerosos aspectos de interesse e, na verdade, em termos narrativos, sua biografia funciona como fio condutor que me permite abordar uma série de temáticas historiográficas interrelacionadas, como a vida dos libertos na Bahia oitocentista, o movimento de retorno a África, o tráfico de escravizados no período ilegal ou os pormenores do comércio atlântico que permitiu aos retornados se constituir numa elite local em terras africanas”, comenta Parés.

O antropólogo conta que, em sua pesquisa, tentou “decifrar as aparentes motivações e contradições” do personagem, “abrasileirado e transgressor, católico e poligâmico, liberto e traficante, oprimido e opressor, negro em terra de branco e ‘branco’ em terra de negro, um apátrida atlântico na era dos nacionalismos”. Para ele, “é preciso insistir na excepcionalidade da trajetória de Joaquim de Almeida, um caso raro e singular de relativo sucesso econômico numa sociedade classista, racista e desigual que marginalizava a maioria dos negros, escravizados ou libertos”.

O pesquisador afirma que essa trajetória única “oferece uma janela privilegiada para acessar o mundo de uma minoria de libertos africanos que, com seus descendentes, conseguiu retornar à África e se afiançar como um grupo diferenciado”.

Consciência racial

 O historiador Venancio recomenda cuidado ao dizer que africanos também traficavam escravos africanos. Ele afirma que, na época, não havia “essa identidade continental”, então o que coexistiam eram “várias etnias e reinos com identidades próprias e que entravam em conflitos”. “Então afirmar sobre o ‘envolvimento de africanos’ no tráfico de escravos é também injusto ou, em parte, equivocado. Foram pequenas frações da classe dominante local que se envolveram com o tráfico de escravos”, frisa o historiador. “A imensa maioria dos africanos foi vítima do tráfico de escravos.” Ele ainda atenta para o fato de que “os africanos nunca construíram navios para o envio atlântico de escravos ao Novo Mundo”, “quem fez isso foram os europeus”.

Silva Junior ressalta que uma história como a de Almeida tem de ser vista como exceção. “Segundo o site Slave Voyages [banco de dados internacional de documentos ligados ao tráfico escravagista], o Brasil recebeu mais de 5 milhões de africanos durante toda a duração do tráfico negreiro. […] Desses, apenas uma pequena parcela, irrisória mesmo, teve envolvimento efetivo no comércio atlântico de escravizados. E um número ainda menor prosperou como Joaquim de Almeida.”

Por outro lado, o historiador comenta que “a participação africana no tráfico é assunto para lá de conhecido”. “Almeida não foi o primeiro, embora tenha sido um dos mais prósperos que se tem notícia”, diz. “Esse foi o mundo que parte significativa deles conheceu, nos dois lados do Atlântico.”

Perguntado pela reportagem se encontrou alguma indicação de objeção de consciência de Almeida sobre o fato de ele, depois de ter sido escravizado, passar a ganhar a vida como explorador escravagista, Parés afirma que “as evidências são silenciosas a esse respeito”.

“Cabe notar, porém, que ao mesmo tempo que Almeida se engajava no nefando negócio do tráfico de gente, ele atuou como procurador, na Bahia, na concessão de várias cartas de liberdade a escravizados”, ressalta.

“É preciso lembrar que a escravização era uma instituição legal e basilar, não apenas no Brasil império, mas também nas sociedades africanas em que Almeida tinha nascido”, pontua. “Nosso julgamento moral condenatório do comércio de escravizados certamente não responde aos mesmos valores e referenciais que prevaleciam na primeira metade do oitocentos, embora as vozes dos movimentos emancipacionistas já fossem bem audíveis.”

O antropólogo concorda, entretanto, que Almeida “obviamente estava informado do debate e tomou suas decisões”. E afirma que um dos desafios “é entender esse paradoxo da vítima que se torna algoz”.

Silva Junior contextualiza que “essa consciência racial é um fenômeno mais tardio”. “Aliás, essa cobrança é uma operação racista, pois ninguém cobra consciência racial dos capitalistas brancos na Inglaterra do século 19 que exploravam os operários brancos das fábricas. Nem lá atrás e nem agora.”

“Essa questão das identidades raciais é teoria do século 19. A ideia de África e africano é uma ideia exógena, uma identidade atribuída. Os africanos se auto-identificavam com suas identidades étnicas, seus povos, suas conexões linguísticas”, pontua o historiador Bezerra.

 

Veja o artigo original no link abaixo:

https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72drwge57wo

Como EUA lucraram com escravidão no Brasil

Outros Assuntos

Como os Estados Unidos lucraram com tráfico de africanos escravizados para o Brasil

Por Marilia Marasciulo

De Florianópolis para a BBC News Brasil

Com cerca de 450 africanos da região do rio Congo, a escuna norte-americana Mary E Smith foi a última a tentar desembarcar escravizados no Brasil. No dia 20 de janeiro de 1856, ela foi capturada em São Mateus, no Espírito Santo, em uma operação que deixou claro que a Lei Eusébio de Queiroz, aprovada em 1850 proibindo a entrada de escravos, de fato pretendia acabar com o tráfico de escravos no país. Antes dela, tratados assinados por pressão da Inglaterra após a Independência ficaram conhecidos como “leis para inglês ver”, pois na prática as próprias autoridades locais eram coniventes com o contrabando.

Pesando 122 toneladas e com um valor estimado em US$ 15 mil dólares, a Mary E. Smith foi construída em Massachusetts especificamente para o tráfico negreiro. Antes mesmo de deixar Boston rumo à África, no dia 25 de agosto de 1855, a escuna chamou a atenção das autoridades britânicas e norte-americanas. Houve até uma tentativa de prisão na saída, mas o capitão, Vincent D. Cranotick, conseguiu expulsar os intrusos e partir.

Poucas embarcações do tráfico foram tão monitoradas quanto a Mary E. Smith. A Marinha no Rio de Janeiro, ao receber a correspondência dos EUA, alertou oficiais britânicos, brasileiros e americanos sobre a chegada iminente da escuna. Ao se aproximar da costa, foi abordada pelo navio de guerra Olinda e levada para Salvador, na Bahia.

A situação era preocupante. Majoritariamente jovens com entre 15 e 20 anos, os africanos padeciam de diversas doenças — nos 11 dias de viagem entre São Mateus e Salvador, mais 71 morreram. Quando os oficiais baianos condenaram a Mary E. Smith e levaram os sobreviventes para a cidade, a população teria entrado em pânico: desde agosto do ano anterior, Salvador enfrentava uma epidemia de cólera, e acreditava-se que a presença dos africanos doentes pioraria a situação. Mais africanos morreram nas semanas seguintes. No dia 14 de fevereiro, dos 213 que sobreviveram, 88 continuavam muito doentes, inclusive de cólera.

O capitão também morreu na chegada da Mary E. Smith a Salvador, escapando da acusação por tráfico ilegal de escravos. No dia 30 de junho de 1856, 10 membros da tripulação foram julgados — destes, 5 eram cidadãos norte-americanos. As penas variaram de 3 a 5 anos de prisão, além do pagamento de uma multa de 200 mil réis (algo em torno de US$ 112 mil) para cada africano que teria entrado no Brasil.

Recursos indiretos

A história da Mary E. Smith é simbólica não só por marcar o fim do tráfico de escravos no país, mas por indicar a participação dos Estados Unidos na atividade ilegal. Entre 1831 e 1850, navios com a bandeira norte-americana corresponderam a 58,2% de todas as expedições negreiras com destino ao Brasil. A estimativa é de que tenham transportado quase 430 mil africanos — foi o Camargo, um brigue americano, aliás, que em 1852 desembarcou com sucesso os últimos escravizados no país.

Ao contrário dos africanos da Mary E. Smith, que foram emancipados e submetidos à tutela do Estado por 14 anos, os cerca de 500 que chegaram ao porto do rio Bracuí, na região de Angra dos Reis, não tiveram o mesmo destino. “Após desembarcarem, pela proximidade da Serra do Bananal onde havia plantações de café, os senhores começaram a escondê-los na senzala”, diz a professora de História Martha Campos Abreu, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

As autoridades locais chegaram a tentar reaver os escravizados, decretando pela primeira vez uma busca pelas fazendas, em uma demonstração do que estaria por vir com a Mary E. Smith. Mas a tentativa foi quase em vão: segundo a professora de História Beatriz Mamigonian, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), somente cerca de 70 foram recuperados. O comandante do brigue, Nathaniel Gordon, por sua vez, conseguiu escapar. Após atear fogo no Camargo, fugiu para os EUA — uma década depois, foi enforcado por sua participação no tráfico, único norte-americano a sofrer pena capital pelo crime.

Navios com bandeiras americanas eram dos poucos imunes à fiscalização inglesa.

Em 1896, o sociólogo W.E.B. Du Bois chamou a atenção para as relações entre os EUA e o Brasil no período do tráfico ilegal. “O tráfico americano de escravos finalmente passou a ser conduzido principalmente por capital dos Estados Unidos, em navios dos Estados Unidos, comandados por cidadãos dos Estados Unidos e sob a bandeira dos Estados Unidos”, escreveu Du Bois.

Autor de “O Sul mais distante: os Estados Unidos, o Brasil e o Tráfico de Escravos Africanos (Companhia das Letras, 2010)”, o historiador Gerald Horne engrossa o coro de críticos americanos ao papel do país na escravidão brasileira. “O governo brasileiro deveria buscar reparação, porque esses traficantes de escravos estavam violando as leis do Brasil e praticando uma atividade ilegal. O fato de que aconteceu 170 anos atrás não diminui a reclamação, não existe um estatuto de limitação na legislação internacional por crimes contra a humanidade, e o contrabando era um crime contra a humanidade”, disse Horne em entrevista à BBC News Brasil. “Mas há relutância em trazer justiça para, pelo menos, os brasileiros que são descendentes dos escravos trazidos por navios norte-americanos.”

O historiador da UFF Leonardo Marques, um dos maiores pesquisadores brasileiros da participação dos EUA na escravidão brasileira, aponta algumas ressalvas. Para Marques, os recursos norte-americanos estiveram mais presentes a partir de 1820, mas de forma indireta e ainda muito ligados a grupos específicos de contrabandistas portugueses. “Por muito tempo, acharam que eram americanos, mas hoje sabemos que muitos eram portugueses que chegaram a adquirir a cidadania para conduzir o tráfico”, explica o professor, que teve a tese de doutorado sobre o assunto na Universidade Emory, The United States and the Transatlantic Slave Trade to the Americas 1776-1856, transformada em um livro publicado pela Yale Press em 2016.

Segurança da bandeira

O interesse nos Estados Unidos se dava por um conjunto de fatores. O primeiro era a qualidade das embarcações. Desde o período colonial, a região da Nova Inglaterra fortaleceu a tradição de construção naval, competindo com os próprios britânicos, e as guerras contra os colonizadores também contribuíram para o desenvolvimento dos barcos. “A qualidade deles era muito alta, eles eram a vela, mais rápidos, e aos poucos foram desbancando a própria frota britânica”, conta Marques. Além de economizar tempo nas viagens, as embarcações eram consideradas capazes de despistar perseguidores da Marinha Britânica e piratas.

A bandeira americana era também uma das poucas imunes a vistorias a bordo. A partir de 1807, a Inglaterra começou a fechar o cerco contra o tráfico de escravos — mais do que razões humanitárias, havia diferentes interesses econômicos por trás da pressão, entre os quais criação de mercado consumidor para produtos industrializados. Embora internamente tanto abolicionistas quanto escravistas (que acreditavam já ter uma população de africanos interna suficiente e autossustentável) tenham concordado com as medidas, os EUA se recusaram a autorizar vistorias em seus barcos, acusando os britânicos de ferirem a soberania da ex-colônia.

Para os criminosos, a situação era perfeita: navios rápidos e com uma bandeira imune à fiscalização inglesa. Não à toa, conta Marques, no período havia várias companhias dos EUA que vendiam navios para traficantes no Rio de Janeiro. “No Jornal do Comércio, havia anúncios de navios como ‘excelentes para transporte de escravatura'”, diz o historiador.

A situação chegou a gerar alguns incidentes diplomáticos, dividindo as autoridades entre as que acreditavam que a venda dos barcos e o uso da bandeira era legítima, e os que achavam que não. Em 1844, Henry Wise foi nomeado ministro dos EUA no Brasil e, em conjunto com o cônsul George Gordon, buscou eliminar a bandeira do país do tráfico. Entre as medidas, passaram a enviar envolvidos no tráfico para serem julgados nos EUA e promoveram o desmantelamento de esquemas de cidadãos norte-americanos que vendiam ou fretavam embarcações para traficantes brasileiros.

Consumo financiado pela escravidão

Um dos esquemas envolvia a companhia Maxwell Wright & Co, que combinava duas atividades que acabaram interligadas ao longo da década de 1840: de um lado, vendiam os navios para traficantes de escravos; de outro, exportavam o café produzido pelos mesmos escravos de volta para os Estados Unidos, onde o mercado consumidor crescia. Neste sentido, observa Marques, a participação dos EUA na escravidão brasileira transcende a questão econômica. “A identidade nacional que estava sendo construída no país, do americano tomador de café em vez de chá, está amarrada com a escravidão”, diz.

A professora Mamigonian, cuja pesquisa se concentra na abolição do tráfico e nas transformações da escravidão no século 19, complementa o raciocínio: “vemos um elemento muito próprio do capitalismo do século 19, quando a ascensão do consumo vai na contramão do abolicionismo.” O problema, neste caso, não era restrito aos EUA. O próprio Reino Unido, que em 1833 aboliu a escravidão, continuou consumindo produtos brasileiros produzidos com mão de obra escrava e fornecendo itens industrializados para o comércio ilegal na África.

O crescimento do mercado consumidor para os produtos brasileiros, ao mesmo tempo em que vinculou os americanos ainda mais profundamente à escravidão no Brasil, corrobora a tese de que o tráfico existiria com ou sem a presença dos EUA. Em suas pesquisas, Marques observa que, embora uma cláusula no acordo entre EUA e Inglaterra permitindo a revista das embarcações possivelmente diminuiria a presença dos norte-americanos no tráfico, o controle da compra e venda de navios permaneceria ambíguo. Não à toa, traficantes portugueses acabaram criando suas próprias redes, principalmente em Nova York, adquirindo inclusive a cidadania do país.

A conclusão dos especialistas é que, enquanto houvesse demanda pelos produtos do trabalho escravo no mercado mundial e a escravidão se mantivesse um mercado lucrativo (um escravo comprado na África por US$ 40 valia em terras brasileiras algo entre US$ 400 a US$ 1.200, em torno de US$ 48 mil), haveria criminosos dispostos a manter o sistema ativo. Tanto é que, quando a captura do Mary E Smith finalmente sinalizou que o tráfico para Brasil não era mais um bom negócio, muitos traficantes voltaram as atenções para Cuba, que adotou medidas semelhantes somente em 1862.

O fim do tráfico nas Américas, por sua vez, só ocorreu de fato com a abolição da escravidão no Brasil, em 1888, último país do Ocidente a libertar africanos escravizados.

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53242663

05/julho/2020

Escravos entravam na justiça e faziam poupança pela liberdade

Outros Assuntos

Por Amanda Rossi

Da BBC Brasil em São Paulo,  19 fevereiro 2018, http://www.bbc.com/portuguese/geral-43078878

Em 1883, Rita entrou com uma ação na Justiça da Imperial Cidade de São Paulo contra o Tenente Julio Nunes Ramalho. Poderia ser mais um processo qualquer, não fosse um fato notável: Rita não era considerada cidadã pela lei brasileira. Era escrava. Já o Tenente Ramalho era seu proprietário. O objeto do caso era o interesse de Rita de comprar sua liberdade.

De Rita, a Justiça sabia pouco. Não tinha sobrenome, nem idade certa – “38 anos aproximadamente”. As informações eram apenas que tinha aptidão para o trabalho e era cozinheira, escravizada por Ramalho.

Por não ser livre, Rita não tinha direito a procurar a Justiça diretamente e precisou de um intermediário para representá-la. Tendo obtido uma doação de 200 mil réis “em moeda corrente deste Império”, queria comprar sua alforria. Pedia, então, que seu proprietário fosse intimado para declarar se aceitava ou não a quantia. Seu representante conclui o pedido dizendo que o fazia “a rogo da suplicante, que não sabe escrever”.

O Brasil estava mudando. Depois de mais de três séculos, a escravidão se aproximava do fim. Em 1850, havia sido proibido o tráfico negreiro. Em 1871, foi aprovada a Lei do Ventre Livre, que estabeleceu a liberdade para filhos de mulheres escravizadas nascidos dali em diante – como o menino Benedito, a quem Rita deu à luz três anos após a lei.

Além disso, a Lei do Ventre Livre deu às pessoas escravizadas o direito de juntar dinheiro – fosse fruto de doações, do próprio trabalho ou de economias – e, com ele, comprar sua própria alforria, independentemente da autorização do seu proprietário.

Essa alteração legal multiplicou nos tribunais as chamadas ações de liberdade. A de Rita é uma delas. Está armazenada no Acervo Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, junto com dezenas de outros processos centenários, em papel envelhecido e texto manuscrito, movidos por pessoas escravizadas contra seus senhores. Além de São Paulo, há casos semelhantes em diversos pontos do país.

“A ação de liberdade quebra a autoridade senhorial, porque passa a existir uma forma de se libertar da escravidão independentemente da vontade do senhor”, afirma a historiadora Keila Grinberg, professora da Unirio e da New York University, e uma das maiores especialistas neste tema no Brasil.

“Isso quebra o mito de que a alforria era apenas uma forma de reconhecimento do senhor (aos seus escravos). Nada disso! Eles também foram para a Justiça para conquistar sua liberdade”, completa Lúcia Helena Silva, professora da Unesp, que pesquisou as ações de liberdade em Campinas. Porém, as ações de liberdade não eram um caminho fácil. “Apenas a minoria das pessoas escravizadas conseguia entrar na justiça. A maioria dos escravos nascia e morria escravo”, pondera Grinberg.

Negociação na Justiça

Junto ao pedido de Rita, foi anexado um atestado médico: “Atesto que a preta Rita sofre de anemia e de artrite crônica, moléstias que por muitas vezes a inabilitam para qualquer trabalho”. A informação tinha um objetivo estratégico. “Normalmente, o escravo usava a estratégia de se desvalorizar”, explica Lúcia Helena Silva.

“Já o senhor fazia tudo possível para dizer que seu escravo valia muito”. No caso de Rita, o Tenente Ramanho respondeu à intimação dizendo que não aceitava os 200 mil réis oferecidos. “Considero ser de maior valor a minha escrava. Há três meses, a comprei pela quantia de 800 mil réis”.

Quando não havia concordância sobre o valor da liberdade, como no caso entre Rita e Ramalho, não era o fim do processo. Cabia ao Estado fazer a arbitragem do preço, que as duas partes seriam obrigadas a aceitar. Para isso, o primeiro passo era a pessoa escravizada ser mandada para uma avaliação.

“Depois de haverem examinado a dita escrava Rita, tendo em consideração a idade, saúde e profissão da mesma, (os avaliadores) apresentam os seguintes laudos: Salvador avaliava-a em 500 mil réis. Fernando em 320 mil réis. Em consequência da divergência havida, foi aceito o laudo de 320 mil réis”.

O resultado da avaliação foi uma vitória para Rita. O valor estava mais próximo dos 200 mil réis que ela tinha proposto do que dos 800 mil réis pedidos por seu senhor. Por intermédio de seu representante livre, Rita apresentou à Justiça os 120 mil réis que estavam faltando e requereu “que lhe fosse passada a carta de liberdade”. Depois de três meses na Justiça, Rita, que nasceu submetida à escravidão no Brasil, se tornou finalmente uma mulher livre.

Redes de apoio nas cidades

“Apesar de o Estado e suas leis abrirem portas para dar visibilidade a questões dos escravos, não era fácil iniciar um processo judicial e, menos ainda, terminá-lo”, explica a historiadora Heloísa Maria Teixeira, que pesquisou a compra de alforrias em Mariana, Minas Gerais. Em geral, os escravos que recorriam à Justiça viviam nas cidades. Ali, tinham mais acesso a informação. Também podiam receber apoio de redes de solidariedade, formadas por outras pessoas escravizadas e libertas, além de terem contato com ideias e movimentos abolicionistas. Já para aqueles escravizados na zona rural, entrar na Justiça era muito mais difícil.

Ao consultar os documentos mineiros, Heloísa encontrou o caso da menina Eva, escrava de “mais ou menos 14 anos”, nascida na década de 1850. Sua história mostra como o fato de estar na cidade facilita o surgimento de uma rede de apoio.  A madrinha de Eva, que não tinha dinheiro, passou a pedir esmolas na cidade com o intuito de libertar a menina. O processo de Eva, inclusive, elenca uma lista de pessoas que participaram da arrecadação de fundos para compra de sua liberdade. Ao final, a madrinha conseguiu reunir 120 mil réis em dinheiro. O valor foi complementado por um burro entregue pelo pai da menina, no valor de 80 mil réis. Com os 200 mil réis totais, foi comprada a carta de alforria de Eva.

Além de processos de compra de alforria, houve no Brasil diversas ações de liberdade baseadas na ilegalidade da escravidão. Em 1883, por exemplo, Antonio – também sem sobrenome – entrou na Justiça de São Paulo argumentando que sua matrícula de escravo informava ser ele africano e ter 51 anos.

Logo, Antonio teria nascido na África em 1832. Porém, uma lei brasileira de 1831 declarou que era livre todo o escravo vindo de fora do Império do Brasil a partir daquela data. Foi a primeira legislação a tentar coibir o tráfico de pessoas escravizadas para o Brasil. Desta forma, como Antonio nasceu depois da lei, ele havia sido trazido para o país de forma ilegal. Por consequência, sua escravidão também era ilegal.

Seu proprietário tentou contra argumentar. Afirmou que a matrícula do escravo estava errada e que, na verdade, ele tinha nascido cinco anos antes da lei. Em termos práticos, isso faria com que Antonio não tivesse direito à liberdade. Por outro lado, essa linha de argumentação implicaria o reconhecimento de que um menino de cerca de 5 anos tivesse sido transportado nos navios negreiros e vendido ainda criança no Brasil.

Mas a argumentação do dono de Antonio não foi bem sucedida. O juiz do caso concedeu a carta de liberdade ao “africano”. Mas sob a condição estabelecida pelo proprietário: de que o agora ex-escravo prestasse serviços por mais quatro anos para seu antigo senhor e sua esposa. Assim, Antonio ficaria livre apenas em 1887 – um ano antes da Lei Áurea ser sancionada pela Princesa Isabel, decretando oficialmente o fim da escravidão no Brasil.

“Esses juízes e tribunais não eram abolicionistas. Tomavam a decisão baseados naquele caso específico. Ninguém ali estava defendendo o fim da escravidão”, diz Grinberg.

Dificuldade para juntar dinheiro

As pessoas escravizadas nas zonas urbanas também tinham mais possibilidade de juntar dinheiro para comprar sua liberdade. Alguns deles, além do trabalho forçado, realizavam pequenos serviços remunerados. As mulheres, por exemplo, vendiam quitutes, hortaliças, eram babás, amas-de-leite, lavadeiras. Os homens eram sapateiros, barbeiros, carregadores.

Nas cidades, também eram mais comuns os chamados “escravos de ganho” – quando as pessoas escravizadas prestavam serviços para terceiros, sendo obrigadas a entregar o dinheiro para seus proprietários, ficando apenas com uma pequena parte.  Ainda assim, não era nada fácil que esses trabalhos rendessem o suficiente para comprar a alforria. Em geral, no final do século 19, o preço da liberdade variava de 200 mil réis a 2 contos de réis (equivalente a 2 milhões de réis). “A maior parte das pessoas não deve ter conseguido juntar o suficiente. Depois que o tráfico foi proibido, o preço do escravo subiu ainda mais”, explica Grinberg.

E onde os escravos guardavam dinheiro? Uma das possibilidades era colocar na poupança. Documentação histórica da Caixa Econômica, ainda pouco estudada, mostra diversas cadernetas pertencentes a escravos. Fundada em 1860, a Caixa não permitia que pessoas não livres fossem depositantes. Mas, após a Lei do Ventre Livre, em 1871, isso mudou. A caderneta de poupança número 43 da Caixa Econômica de São Paulo, datada de 1875, pertencia a Judas, escravo de Manuel de Andrade. O formulário do banco trazia a palavra “senhor” antes do nome do depositário. Mas, no caso de Judas, a palavra foi riscada. Afinal, sua condição de pessoa escravizada impedia que fosse tratado por “senhor”. Por isso também, Judas não tinha sobrenome reconhecido. Judas tinha 54 anos, era hortelão, morava em São Paulo, era casado e não sabia ler e escrever. Naquele ano, tinha juntado na poupança 24 mil réis. Muito distante dos preços praticados pela liberdade naquela época. “Pelos valores depositados nas poupanças, a gente vê era que era muito difícil comprar alforria com base nesse dinheiro. Mas existe, sim, uma relação entre poupanças e compra de alforria, embora seja pouco”, fala Grinberg.

“De toda forma, era algo significativo, porque mostra outras formas de resistência à escravidão. Os escravos conseguiam brechas para entrar no sistema financeiro e juntar dinheiro, apesar de tudo que era imposto a eles”, considera o historiador Thiago Alvarenga, professor da Universidade Federal Fluminente, um dos responsáveis por resgatar o arquivo de cadernetas de poupança do século 19 da Caixa Econômica. Na sua pesquisa, Alvarenga encontrou um caso intrigante: um homem escravizado que tinha uma poupança de 4 contos de réis, valor que seria mais que suficiente para comprar sua liberdade. “Pode ser que estivesse juntando dinheiro para libertar várias pessoas da sua família”, considera o historiador.

Já outras cadernetas de poupança da Caixa mostram a saída de dinheiro para comprar a alforria. Um dos casos é o de Margarida Luíza, escrava de Joaquim José Madeira, cuja conta foi encerrada três anos depois de criada, retirando os 353 mil réis acumulados para obter sua liberdade.

Embora a historiografia já tenha desvendado muito sobre as diferentes formas de resistência das pessoas feitas escravas no Brasil, ainda há perguntas sem respostas e espaço para novas pesquisas.

“O que não falta é documento da escravidão. Eles estão espalhados pelo Brasil em cartórios, igrejas, tribunais, bancos, e precisam ser salvos, literalmente. E isso se faz com política pública. São arquivos importantíssimos! Sem eles, a gente perde a chance de conhecer melhor nossa história”, afirma Keila Grinberg.

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